terça-feira, 24 de agosto de 2010

A Pedra

Você era uma abstração, um fundo de breu, a linha de um horizonte distante, perfeita, o outro lado do arco-íris, o avesso do óbvio e inverso do claro, mas ainda assim brilhante, fria, macia, de um sorriso lacônico, de um olhar translúcido enigmático , e piadas de quem vê o sal onde se cheira mel.
Seus bons modos eram a sublimação de rios subterrâneos, correntes vulcânicas adormecidas, mas em constante ebulição, um caldo que cozinhava uma alquimia do tempo . A pedra que empurrava montanha acima não era nada mais que um monolito de criptonita, capaz de lançar ao escuro do poço o mais poderoso super-homem, que, de súbito, embevecido pela sua presença vaga e serena, iria se erguer e voltar, dessa vez mais cauteloso, consciente de sua mortalidade, de sua fragilidade , e , mesmo assim, animado com a tarefa hercúlea de te seguir de novo. A montanha era alta, exigia esforço e constância, e o super-homem, embora não tivesse vindo ao mundo para carregar pedras, faria as pazes com Saturno, em busca de um castelo para descansar.
Você era o feitiço do tempo.

domingo, 22 de agosto de 2010

Crônica de um Aniversário

Crônica de um aniversário

Acordei com a tela cheia de imagens congeladas, o processador da memória de minha máquina entrara em colapso, era manhã e era meu aniversário. Cada ano era mais um, e não saberia interpretar o significado de um número qualquer para além da sua simples expressão numérica : trinta e quatro ... apesar de que, ali, naquele momento os ícones irremovíveis de anúncios de auto-ajuda e dinheiro grátis prenunciassem minha disposição um tanto caótica , como se em renúncia à busca de qualquer conclusão lógica, mesmo que pessoal e indizível, eu afinal pudesse compreender aquele dia, aquele aniversário, aquele ponto na travessia do rio.
Reiniciei, tomei um banho, e me pus, embaixo d´água, a refletir sobre a aflição mais onipresente de todas que me atingiam : ela tinha tirado do ar os tais contos, suspiros literários , em forma de ficção, sobre os quais eu me debruçava frequentemente, eventualmente tecendo uns comentários que, embora simples e de pouco fôlego, pudessem de algum jeito dialogar com textos que jorravam como cachoeiras do coração dela, uma que eu conhecia assim, ali, pelas janelas das nossas telas.
Envolvido pelo ritmo a um só tempo sereno e sufocante dos seus poucos parágrafos, cultivei uma estranha forma de dependência daquelas aventuras confessionais, repletas de descargas emotivas , breves invocações líricas, em que ela se travestia de criança, velha, homem, e várias personagens femininas, criadas à flor da pele , e o arremate sempre afiado a lâmina, alinhavando uma forma irônica e sutil, embora pessimista, de ver o mundo. Aguardava cada novo conto como uma novo enigma, e esse enigma como mais um tijolo do muro de outro enigma, este ainda maior, e mais indecifrável.
Como é misterioso viver, e ali eu intuía que os tempos radicais do agora, com sua profusão de janelas virtuais, dizia facilitar a comunicação entre os seres enquanto, de fato só a tornava mais oblíqua e nebulosa, porquanto a quantidade de chances de se comunicar com alguém não tem nenhuma relação com a qualidade dessa interação, e eu poderia me imaginar decodificando tons de voz, expressões faciais, olhares, linguagem corporal, como se estivesse fisicamente próximo a ela, mas essa proximidade física era tão improvável como imaginar que eu pudesse convencê-la de que minha admiração por ela passava , sim, e em boa medida, por seus contos.... na rede eu só podia especular as intenções por trás das palavras, e depois só me restava recorrer a oráculos igualmente duvidosos numa busca insana e errática por algum sentido naquilo tudo ...
Natural era que no dia do aniversário essa busca de sentido se agravasse, e eu mais uma vez me perguntava por que estava eu fazendo 34 anos naquele dia, e por que o dia era assim ,frio e ensolarado, quem é que me ligaria para me dar parabéns, e o significado geral de um dito ciclo que só tinha conotações numéricas como os capítulos de um romance ainda em processo de escrita ... natural era questionar o enredo de sempre, os desenlaces que parecem nos perseguir quanto mais se tenta fugir deles, uma serena sombra de medo enquanto o espírito se debate contra a camisa-de-força daquilo que poderíamos chamar de destino ....
Pus a roupa, saí em direção ao estúdio e pensei : números não significam nada !